Acordei às 6:00 da manhã, com um apito de locomotiva. Pronto. O dia começou.
Virei para o lado. Meu irmão já se vestia. Todos os dias, de manhã, ele tinha de se levantar cedo, para trabalhar na fábrica. Ele tossiu.
- Tome cuidado- eu disse. Tossiu novamente.
- Obrigado.
- Tente não pegar uma pneumonia
- Eu não prometo nada.
Sorri. Não devia ter feito isso. É tão horrível. Meu pai foi forçado a se aposentar porque estava muito doente. Agora, Hazard tem de ir todo o dia para aquela fábrica suja. Enquanto seus chefes fumam cigarros franceses nas salas de comando. Eu odeio a sociedade. É tudo tão injusto.
- Boa sorte no seu trabalho- disse Hazard. O significado do nome dele é “sorte”. No mundo em que vivemos, realmente precisamos ser sortudos.
- Boa sorte no seu- eu repliquei sorrindo. Quando ele saiu, eu enchi a bacia pela metade com água fria. Tomei um banho rápido. Peguei meu uniforme escolar. Tenho 14 anos. Temos que ir para a escola até os 15 anos. Eu já planejei minha vida: Largarei a escola daqui há 1 ano. Trabalharei consertando locomotivas, como minha tia ensinou-me antes de morrer. Eu e Hazard conseguiremos dinheiro para pagar a faculdade de Jasper. Ele se tornará próspero.
Terá estudado. Será melhor que seus irmãos.
O uniforme da escola é a roupa mais chique que tenho. Camisa azul, saia preta, avental. Prendo meu cabelo em um coque desajeitado e coloco um lenço preto. Hora dos estudos.
Temos que ficar na escola de 7:00 até 13:00. Aí ficamos livres para fazer o que quisermos. A maioria de nós trabalha. Eu ajudo minha prima Irene consertando as locomotivas. Tia Godfreya, a mãe de Irene, nos ensinou a consertar locomotivas como ninguém. Hora de retribuir o favor.
Na escola, primeiro tocamos o hino. Juramos fidelidade a rainha e a bandeira. Depois entramos.
A primeira aula do dia é Educação Patriótica. Onde se exaltam os heróis e se exorcizam os vilões. No início da aula, sempre é contada a mesma história. De como uma guerra entre o Império Americano e a União Arábica destruiu boa parte da civilização. Sobre como todos nós nos levantamos das cinzas. Como agora, passados 1914 anos da Guerra (o tempo é contado como antes e depois da Guerra, portanto estamos em 1914), estamos fortes. Unidos sob a monarquia dos Lannork. Como o Império Britânico é o maior do mundo, desde os romanos. Exaltando as qualidades do Rei, do príncipe de Gales e da Rainha. A doçura das princesas. As qualidades de uma monarquia semi-constitucional. É tudo tão cansativo.
As outras aulas foram Leitura (hoje, Amós, capítulo 1 inteiro), Aritmética e Física (jogamos tênis). Depois, as Aulas Práticas: Costura e artes. Aulas práticas. Seria uma aula prática se eles ensinassem sobre como manusear uma solda. Isso seria uma verdadeira aula prática.
Almocei na escola e logo depois fui correndo para casa. Coloquei as roupas de trabalho (Saia marrom até os joelhos, jaqueta de couro,blusa verde desbotada e coturnos) e fui andando para o trabalho. Eram apenas 5 minutos de casa até o trabalho (por isso eu sempre era acordada pelo barulho do primeiro trem). Tinha tempo então parei numa vitrine. Duas garotas (uma de vestido malva e laço verde, outra de vestido verde e laço malva) se derretiam olhando pela vitrine. Ela gritava: “Novos vestidos chegados há 5 minutos de Paris!”. Mas, de repente, outros vestidos completamente diferentes se materializam na vitrine. “Novos vestidos chegados nesse instante de Paris!” a vitrine grita. Mas e mais garotas se aglomeram em torno da vitrine. A maioria delas reclamando que sua roupa já está fora de moda.
Olho-me no vidro. Jaqueta de couro não abotoada. Coturnos. Saia curta e folgada. E, aquela cintura provavelmente nunca sentiu um espartilho na vida. E o cabelo dela... Curto! Que afronta! Que ofensa! Pálida. Uma cara que simplesmente indicava tédio. Esta mulher (não, ela não é uma dama, é uma mulher) é um espantalho. Que repugnante.
Dou um sorrisinho cínico. Que damas (elas sim, são verdadeiras damas) são tão estúpidas...
- Está espantando os clientes. Saia- um homem grande de terno vem dizer a mim.
- Perfeitamente, senhor- eu levanto minhas saias demais e mostro uma parte da minha coxa num sinal de afronta. Elas me olham. Algumas horrorizadas, outras arrogantes.
Logo chego à estação. Lá, painéis luminosos dizem o horário de embarque e desembarque de passageiros. Outros, simplesmente mostram a última moda. A de 13:35 mostra uma mulher com peruca loira cacheada, penas rosas e cachecol cheio de plumas, rosa também. O vestido ia até um pouco acima dos joelhos, bem apertado. Um laço marcava a cintura finíssima. Estas eram as chamadas Permanentes, modas que podiam ficar até por meses. Eram raras e muitíssimo caras.
Fui ao encontro de Irene na oficina. Assim como meu irmão, ela já tem 21 anos. Vai se casar com ele depois que eu puder substituí-la no trabalho.
- Atrasou-se, Charissa- ela disse. Eu dei um sorriso torto.
- Bom te ver também.
- O Sr. Liddell não vai ser tão tolerante com atrasos assim quando for seu chefe.
- Não se eu prestar a ele favores.
Irene parecia chocada.
- Charissa! Preserve sua decência!
Eu ri. Fomos até o galpão onde ficavam as locomotivas quebradas. Tinham apenas 3. Modelos velhos. Eu estava acostumada a consertá-los.
A primeira foi fácil. Problemas na caldeira. A segunda também foi fácil. Simplesmente haviam pedras nas engrenagens que moviam as rodas. Na terceira, tivemos de soldar peças soltas. Nada mais. Pronto. Tínhamos acabado.
- Vamos pegar o dinheiro- ela disse.
Eu tinha sorte. Ganhava 50 centavos de libra por dia. Quando eu fosse chefe, ganharia 1 libra por dia. 6 libras em uma semana. 27 libras por mês. 324 libras por ano. Era muito, muito dinheiro. Um peixe no mercado custava 25 centavos de libra. 7 dias por semana, mais batatas que custavam 10 centavos de libra a unidade. 35 centavos de libra por dia. 2,45 libras por semana. 9,8 libras por mês. 117 libras por ano com comida. O resto daria para eu pagar galões de água por 10 centavos a cada semana. E ainda sobraria dinheiro para a faculdade de Jasper. Perfeito. Talvez eu até conseguisse manter um corte de cabelo mais longo e comprasse algumas saias até a canela.
Saí as 17:00. Comprei peixe e batatas na feira para amanhã. Meu pai, minha mãe, Hazard, Jasper e eu comemos as 18:00. Jasper dormiu as 19:00. Estava limpando a cozinha com a minha mãe quando ouvi o conceituado jornalista Richard Malborough falar “BOLETIM URGENTE”.
- Vá lá ver o que é, Charissa- mamãe disse enquanto esfregava o balcão, ainda com resquícios de pele de peixe.
“Hoje, devido a invasão da Bélgica pelo Império Alemão, violando a soberania que o Império Britânico e o mesmo Império Alemão asseguraram há muito tempo atrás, o Império Britânico hoje declarou oficialmente guerra ao Império Alemão e seus aliados”.